maio 07, 2004

Meu lado esquerdo

Meu lado esquerdo do cérebro não funciona muito bem. É essa a justificativa que ofereço às pessoas quando fica explícito o quão avoada que sou. Não é uma justificativa inventada, pode acreditar. Também não sei se é plausível dizer que é aceitável, uma vez que eu não entendo nada de questões cerebrais ou coisa parecida, exceto a parte que justifica a insanidade humana, para a qual eu também contribuo e de forma bastante ativa. Se você, meu caro amigo, está achando isso um tanto esquisito, não ache. Lembre-se daquela velha e sábia frase do Caetano Veloso: "de perto, ninguém é normal" e a normalidade passou longe do meu planeta, tenha a certeza.

Quanto ao lado esquerdo, atribuo a justificativa a uma queda que tive aos três anos de idade, o que me coube uma fratura no lado direito da cabeça. Como existe a teoria de que o lado direito do cérebro comanda o esquerdo e vice-versa, adaptei essa lógica à minha problemática. Vai dizer que não faz sentido?! Se restaram seqüelas? Hmm... você tem alguma dúvida?

Pois bem, eu não tenho nenhuma. Para captar esse meu grau de loucura foi muito simples. Bastou mais uma vez acabar as pilhas do meu walkman para que eu me colocasse a refletir sobre a vida. Como? Simples e, se quiser, você também pode tentar. Pegue um dia da sua vida, apenas um dia, e trace sua trajetória. Tente, vá fundo. O meu dia escolhido rendeu ótimos resultados e muitas, mas muitas trapalhadas. Mas o pior de tudo foi descobrir que minha memória definitivamente não está compatível com meus quase 22 anos de idade. Não, não está mesmo.

Imagine você acordar as cinco da matina, tomar aquela ducha demorada para refrescar o tico e o teco e começar o seu dia com, não um, mas vários esquecimentos. Primeiro, depois do café da mama, peguei meus pertences e, quando cheguei ao portão, com um singelo toque na face percebi que estava sem meus óculos. De início, você até tenta se imaginar no escritório, na frente do computador sem eles e... não, não dá. Então, você sobe as escadas, caminha xingando a si próprio como uma autopunição, chega até a sua escrivaninha pensando no que raios você foi fazer ali mesmo. Ah, sim, os óculos. Apanha sua visão para o mundo exterior e ouve de novo todas aquelas recomendações de mãe. É engraçado porque todo dia é a mesma coisa, sem mudar uma vírgula: “vai com Deus, minha filha, tenha um bom dia, cuidado na rua com esses malucos, não chegue tarde...”.

Quando finalmente você chega ao portão novamente, não consegue passar para o lado de fora porque esqueceu as chaves. Oh, as chaves. Não adianta, desta vez, larga os pertences em cima de qualquer coisa e repete o percurso outra vez. Só não repete os mesmos palavrões pela milésima vez porque quando chega na porta se depara com sua mãe com as danadinhas na mão. Só resta rir da própria desgraça mesmo. Se você acha que este curto período matinal acaba por aí, está redondamente enganado. Depois de sair na rua e chegar ao ponto para pegar o coletivo, você percebe que alguma coisa está estranha. Não, não foi o passe que esqueceu em cima da escrivaninha. Parece ser algo mais importante. Mas, tudo bem, você apanha outro passe na bolsa e finalmente senta-se no banco altão que está lá todos os dias à sua espera.

O astro-rei brilhando e você, compenetrada, testando várias pilhas usadas jogadas na bolsa, tentando adivinhar se conseguirá concluir a viagem mantendo-se a par do noticiário do dia e, claro, daquela bela trilha sonora ou não. Mal sabe. A avenida Interlagos com aquele trânsito que faz qualquer um desejar ter o dom de poder se teletransportar. O coletivo tão lotado que faz você sentir remorso por estar sentado enquanto tantas pessoas estão em pé e as horas, vejam só, as horas voando. Isso sem contar que você ainda tem que enfrentar a avenida Berrini e o mau humor do motorista que nem iniciou o dia e já está estressado com o trânsito da cidade. Você olha para o relógio que, por algum milagre está no seu braço, e percebe então o que de tão importante havia esquecido. Sim, ele mesmo, o celular. Um dia sem celular. E você nem sequer pode dar uma ligadinha básica no escritório para avisar que não chegará trinta ou quarenta minutos atrasada como é de costume, mas sim uma hora. É, uma hora inteirinha, com todos os 60 minutos que lhe cabe. E, quando finalmente chega, percebe que o mocinho que chamou para a entrevista está à sua espera desde as oito horas e lembra-se, que maravilha, que de lá há exatamente 30 minutos tem que estar na avenida São João para um treinamento, cuja apresentação você esqueceu-se de pedir para gravarem em CD. Resta então você liberar um belo sorriso para descontrair e se conformar já que, bom, pontualidade nunca foi o seu forte mesmo.

Se você gostaria que as trapalhadas do dia terminassem por aí, na parte da manhã, fico feliz pela parte que me toca, mas não. Elas continuam durante o dia todo e, partindo dessa minha reflexão, não encontro outro diagnóstico senão, admitir que meu caso de fato é crítico. Então, finalmente começo a entender o porquê daquela franjinha de post it’s amarelos ao redor do meu monitor, sem contar os post it’s virtuais multicoloridos e adaptados com vários alerts na minha área de trabalho. Ah, agora eu também compreendo porque a minha mãe me acompanhou até o quarto outro dia, quando estava me preparando para dormir, só para avisar que eu estava usando óculos, morrendo de medo de que eu fosse dormir com eles e furar a vista com os parafusinhos. E ainda quando eu saio de manhã e, quase sempre, ela me acompanha fazendo um questionário: “está levando guarda-chuva?”, “o cheque do seu irmão?”, “não está esquecendo de nada?”.

Agora, pode falar: você acha que, depois de tudo isso, existe alguma chance do meu lado esquerdo exercer algum auxílio para o direito? Hum, hum, meu amigo. Negativo! O meu lado esquerdo realmente não funciona.

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