fevereiro 10, 2005

O Homem da Livraria

Cheguei com dificuldades para entrar. Cinco, sete, quinze adolescentes obstruindo a passagem. Por que será que decidiram não entrar? Com licença daqui, com licença dali, uma segurada para não escapar a cara feia, uma leve torcida no nariz e, ufa, entrei. A indagação permaneceu sem resposta: o que será que não atraiu a moçada para dentro da livraria? Será que eles não gostam de best sellers e não entraram em menção de protesto? Será que a sobreposição dos livros não atrai muito a atenção? Ou será que o ar estava frio demais para permanecer lá dentro? Não sei. Sei apenas que entrei e todos aqueles livros pareciam música para os meus olhos e como se eles - os olhos - absorvessem o restante dos sentidos humanos. As mães ajudando os pequeninos a escolher um título parecia a visão do paraíso, uma forma promissora de acreditar no futuro, de não dizer em vão "o Brasil tem jeito".

Olhei à minha volta e existiam apenas três mesas com duas cadeiras cada. Todas elas ocupadas. Fui até a seção de "Literatura Nacional" e peguei com cuidado um livro da Cinthia Moscovitch. Tornei a observar as mesas e ainda estavam ocupadas. Decidi ir até a seção de revistas e a circulei com os olhos, como se buscasse uma maçã bonita em meio a muitas maçãs bonitas. Peguei uma maçã que tinha uma atriz em ascendência na capa. Gosto daquelas edições e já sei de cór o formato do discurso de cada jornalista, podendo, sobretudo, escolher a minha preferida. Assunto fútil com um toque de intelectualidade. É complicado, mas ainda dá pra selecionar bem as futilidades da mídia. Comecei ler a revista em pé mesmo. Folhear não, ler mesmo, desde o editorial até as propagandas mais drásticas. Vou lendo as partes menos envolventes, deixando o melhor pro final, igual criança que come o doce devagarinho, para o gosto bom durar mais tempo na boca.

Olhei em volta novamente e, bem ali, uma cadeira vazia. Fui até lá num passo apressado, torcendo para que aquele moço que vem em minha direção não sente na cadeira antes de mim. Consegui. Cheguei perto da mesa e ele estava sentado, concentrado. Olhei pra ele e pedi licença baixinho, para não incomodar sua leitura. Elegantemente, ele sorriu e fez que sim com a cabeça. Sentei com cuidado, abri a revista novamente e continuei de onde havia parado. De vez em quando, eu sorria ou então me controlava para não comentar em voz alta. Estava compenetrada na minha leitura e em meus pensamentos, quando ele me olhou e aproximou o livro aberto do meu rosto, apontando com o dedo indicador e perguntando: "você concorda com isso?" Fiquei assustada, mas decidi dar-lhe atenção. "Não concordo" - respondi sorrindo. "Isso é truque comercial para alavancar as vendas do livro, e não é a toa que este autor está fazendo fortuna" - concluí. Ele recolheu o livro e, me fitando, respondeu que era isso mesmo. Continuei observando-o e ele se afundou na leitura novamente. Concentrei-me na minha.

Os depoimentos de mulheres que realizaram aborto estavam interessantes, a ponto de eu rever os meus próprios conceitos. Estava dividida entre meus dogmas religiosos e a lei da sobrevivência, quando ele novamente resolveu me abordar: "estamos no princípio do fim e as coisas estão acontecendo exatamente como está na Bíblia. Estava lendo numa revista esses dias e o Brasil possui quatro mil e quinhentas religiões. Isso só no Brasil. Aquele Edir Macedo é a figura dos falsos profetas que a Bíblia ensina. Como é que as pessoas acreditam nisso?"

O que fiz foi fitar aquele homem e apenas observá-lo. Ele continuou: "o mundo capitalista não leva as pessoas a lugar nenhum. Fala pra mim se na época dos militares existia desemprego. O indivíduo somente não trabalhava se era vagabundo. E hoje? Quem é que acredita nessa filosofia enganadora do PT? Se tem alguém que ganha com isso são os banqueiros. Eles emprestam dinheiro às empresas que estão falindo e ganham em cima dos juros. Sabe de quem é o dinheiro que eles emprestam? Meu e seu. Eles têm uma doutrina própria. Coitada da empresa que não se unir a outra. É falência na certa. Observe as empresas de ônibus de São Paulo. Hoje, é tudo consórcio disso, consórcio daquilo. E o país fica aí parado. Eles lançam para o povo a teoria da política do crescimento e é tudo teoria. Tudo enganação pra distrair o povo."

Aquele homem que, quem olhasse, só poderia imaginá-lo alimentando os pombos, estava ali na minha frente lançando o desabafo de milhões de brasileiros com tamanha lucidez. Talvez, qualquer outra pessoa no meu lugar se levantasse da mesa, sem mesmo pedir licença e fosse procurar um canto qualquer para concluir sua leitura. Ou permanecesse com a cabeça baixa, ignorando o pobre homem. Eu, ao contrário, decidi erguer a minha cabeça e ouvi-lo. Simplesmente ouvi-lo. Abosorvi cada palavra como se fosse uma aula acadêmica. Sua teoria sobre a máfia no futebol, a continuidade da sua visão político-social do mundo, a defasagem educacional do brasileiro, a verdade sobre o Carnaval, o Oriente Médio, o Bush, o começo do fim. Para aquele homem, o problema do Brasil se resume em uma única coisa: na falta de patriotismo, algo que vai muito além de conceitos de esquerda ou de direita. Aquele homem que nunca mais verei, que não sei o nome e nem de onde veio. Nem mesmo se era de carne ou osso. O homem da livraria.

fevereiro 05, 2005

Acabo de descobrir uma coisa. Poemas, a gente ouve. Isso mesmo, do verbo ouvir. As belas composições de palavras ficam ecoando na nossa cabeça e a gente fica ouvindo aquela voz lá no fundo. Às vezes é uma voz sutil, daquelas que a gente ouve apenas se prestar muita atenção. Mas às vezes, não. Ela é tão forte que os gritos nos faz ensurdecer. E, de tão forte, a gente precisa colocá-la pra fora, pra ver se, compartilhando, o volume fica mais baixo. Mesmo assim, é um risco. Risco de virar epidemia. Mas eu não me importo e não quero saber de vacina.

A primeira vez que ouvi este poema foi num programa de televisão. A pessoa que o arrancou da cabeça em forma de voz nem sequer parecia gostar dessas coisas. Mas, de alguma forma, ficou um pouco do poema nela. E ficou um pouco em mim. E não adianta fugir, porque vai ficar um pouco em você que está lendo estas palavras agora.

RESÍDUO
(Carlos Drummond de Andrade)

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficam poucas
roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
de teu áspero silêncio
um pouco ficou um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
nos pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
em pouco de mim algures?
no consoante?
no poço

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...

De tudo fica um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
do vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver...de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas tudo, terrível, fica um pouco.
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço do cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.