maio 07, 2014

Demiti a Carla



Foi numa sexta-feira em meio ao expediente que decidi colocar em prática algo que já vinha pensando há muito tempo. Um relacionamento conturbado de quatro anos tinha chegado ao fim e a tática seria  a cartada final depois de milhões de pedidos de desculpas, promessas de mudanças, ingressos para show comprado, e tantas coisas que nem me recordo mais.  É assim que funciona quando você tem a limitação de achar que é o problema de tudo.

A reputação da Carla já era do meu conhecimento há anos. Naquela ocasião, quatro grandes amigos já tinham passado por ela e eu também, bem provavelmente, em meio a algumas histórias. Pois bem, naquele dia, peguei o telefone e liguei para ela no meio do departamento: “Oi, meu nome é Juliana, peguei seu telefone com uma amiga, posso marcar uma hora, se possível ainda hoje?”. Estava nervosa e apreensiva e fui caminhando para a sala de reunião vazia que estava ao lado. Fechei a porta e continuei o breve diálogo. Devo ter mencionado valores, mas ela, experiente, me cortou e disse que teria uma hora na agenda no dia seguinte, sábado, às oito da manhã.

A voz que ouvi do outro lado da linha foi a de uma pessoa forte. Falava firme, com segurança e uma certa imposição. Aceitei de pronto um encontro no sábado, às oito da manhã sem nem raciocinar direito. Era questão de vida ou morte. Ao desligar o telefone, pensei imediatamente: “Estou ferrada, essa mulher vai acabar comigo”.

Continuei o meu trabalho normalmente e com uma pontinha de esperança. Devo ter anunciando ao foco minha última cartada, mas não me lembro muito bem. Isso foi há três anos.

No dia seguinte, peguei o metrô e desembarquei na Estação São Judas. Estava tão perturbada que não conseguia pensar direito nas indicações de endereço. Entrei num prédio que estava sendo lavado e mandei “Bom-dia, tenho um horário na Carla, no oitavo andar”. A pessoa procurou pelo nome, fez algumas ligações e finalmente comunicou que não existia ninguém com o nome de Carla lá. Na hora pensei que fosse algum sinal, que deveria recuar ou coisa do gênero. Sou muito ligada a essas intuições que vem do nada. Mas não, peguei o telefone e entendi que, óbvio, estava no prédio errado. Corrigi o endereço e finalmente cheguei.

Atendeu-me uma moça jovem, bonita, com traços italianos, o tom firme, como eu havia notado por telefone. Mas não era uma senhora de meia idade, daquelas que colocam medo e que você fica apreensivo só de encarar. Sentamo-nos em uma poltrona, uma de frente para a outra, numa distância bem próxima, daquelas que não tem como você desviar o olhar, sair correndo, fazer algum gesto com a boca ou a sobrancelha, ou qualquer outra circunstância sem ser percebido. Sem ser analisado. Embora estivesse à minha frente uma pessoa simpática e com uma energia muito leve, aquilo era muito intimidador. Ela me olhou e disse aquilo que repetiu por muitas outras sessões – ela me disse um dia desses quantas eram, mas eu não me lembro -: “E então?”.

Comecei a falar, falar, falar, num monólogo que até hoje me soa como inacreditável. Não sei como consegui falar tanto de mim. Expliquei o motivo da minha estada ali, o que eu queria e, quando me dei conta, umas duas horas depois, virei pra ela e perguntei “E então, quando é a próxima sessão?”. Ela sorriu e me disse para ter calma. Antes, eu teria que responder a uma pergunta muito séria: “Preciso saber por que você está aqui, se por você ou pelo que motivou sua vinda até aqui?”. Depois de toda aquela conversa, foi a primeira vez que gaguejei. Óbvio que a forma da pergunta já presumia o que eu deveria responder para ser aceita. E eu achando que seria assim, tão fácil. Mas não pensei muito, não. Gaguejando, elaborei algo sobre a minha necessidade de ser uma pessoa melhor e outras coisas que honestamente não me lembro. Afinal, eu tinha um motivo para estar lá. Em certo momento em meu monólogo, cheguei a dizer que faria qualquer coisa para ter meu relacionamento de volta. Veja bem, eu disse QUALQUER COISA. Na hora, não notei a alteração no semblante dela, coisa que aprendi a observar algumas sessões depois. Mas o fato é que no epílogo da nossa primeira sessão, eu me ative a responder aquilo que ela gostaria de ouvir (ou não), crente que ela não tinha percebido a minha derrapagem. Acho que me apresentei como um caso interessante a ser tratado, não sei. Marcamos a sessão seguinte e as próximas para as quintas-feiras.

As quintas-feiras eram sagradas para mim. Costumava dizer que fazia parte da minha trindade-santa-semanal: às quartas, um passe; às quintas, terapia; e às sextas, um porre.

Nos meus encontros sociais, sempre que filosofava sobre a vida, colocava a Carla no meio. Ela, sem saber, tornou-se íntima de todos que me conheciam.

Carla sempre brincou comigo dizendo que era uma instituição na minha vida. Todo mundo conhecia a Carla por me ouvir falar. Recebi várias ofertas para fotografá-la às escondidas e então matar a curiosidade de saber como ela é. Outros amigos tiveram esse prazer. Carla atendeu algumas indicações minhas, a gente quase criou um programa de fidelidade.

Desde aquela primeira sessão, eu só me questionava sobre o motivo, o qual tinha demorado tanto a fazer terapia. Meu relacionamento passou por alguns ensaios depois daquilo. Alguns, muitos, diga-se de passagem. Mas, para você ver como são as coisas: a terapia me ensinou que eu não deveria resgatá-lo, que não era bom pra mim, que não correspondia àquilo que eu quero para a minha vida. Tenho absoluta certeza de que eu não teria chegado a essa conclusão sem a Carla.

Depois de longos meses superando meu motivo inicial, a Carla me concedeu aquilo que, ironicamente, respondi em sua primeira pergunta. Ensinou-me a me conhecer e o caminho para ser uma pessoa melhor. Você colocado na frente de um espelho, não tem nada que melhor justifique o desejo e a necessidade de mudar.

Assim como muitos, cometi erros severos com a psicanálise. Achava que jamais poderia dar certo, uma vez que o terapeuta estaria diante apenas da minha  versão sobre os fatos. Que ingenuidade. Até que entendi que terapia não é um tribunal, não é um julgamento, não é o famoso jogo do que é certo ou errado. É autoentendimento. Como prêmio, você também aprende a conhecer melhor as pessoas. Comigo deu certo.

Hoje, estou dando continuidade à abertura de novos ciclos e também em reviver alguns antigos. Antes da Carla, eu só não pirei completamente porque tinha o meu refúgio na escrita, na música, na arte. Estou buscando isso tudo de novo. Usando a experiência de ser o que me tornei, unindo àquilo que nunca deixei de ser. A receita origina uma Juliana mais legal, mais crítica, certamente, mas também muito mais flexível em relação ao outro. Ontem, disse à Carla que precisava andar sozinha por um tempo. Ela entendeu, pegou tudo o que aprendeu sobre mim e me respeitou. Estou na minha nova velha experiência de caminhar sozinha. Não sei por quanto tempo. Carla e o Tio Freud, como ela costumava dizer, voltarão em algum momento, mas só depois que eu usufruir de tudo isso que aprendi sobre mim e identificar a necessidade de novos autoentendimentos.

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