Foi numa sexta-feira em meio ao expediente que decidi
colocar em prática algo que já vinha pensando há muito tempo. Um relacionamento
conturbado de quatro anos tinha chegado ao fim e a tática seria a cartada final depois de milhões de pedidos
de desculpas, promessas de mudanças, ingressos para show comprado, e tantas
coisas que nem me recordo mais. É assim
que funciona quando você tem a limitação de achar que é o problema de tudo.
A reputação da Carla já era do meu conhecimento há anos.
Naquela ocasião, quatro grandes amigos já tinham passado por ela e eu também, bem
provavelmente, em meio a algumas histórias. Pois bem, naquele dia, peguei o
telefone e liguei para ela no meio do departamento: “Oi, meu nome é Juliana,
peguei seu telefone com uma amiga, posso marcar uma hora, se possível ainda
hoje?”. Estava nervosa e apreensiva e fui caminhando para a sala de reunião
vazia que estava ao lado. Fechei a porta e continuei o breve diálogo. Devo ter
mencionado valores, mas ela, experiente, me cortou e disse que teria uma hora
na agenda no dia seguinte, sábado, às oito da manhã.
A voz que ouvi do outro lado da linha foi a de uma pessoa
forte. Falava firme, com segurança e uma certa imposição. Aceitei de pronto um
encontro no sábado, às oito da manhã sem nem raciocinar direito. Era questão de
vida ou morte. Ao desligar o telefone, pensei imediatamente: “Estou ferrada,
essa mulher vai acabar comigo”.
Continuei o meu trabalho normalmente e com uma pontinha de
esperança. Devo ter anunciando ao foco minha última cartada, mas não me lembro
muito bem. Isso foi há três anos.
No dia seguinte, peguei o metrô e desembarquei na Estação
São Judas. Estava tão perturbada que não conseguia pensar direito nas
indicações de endereço. Entrei num prédio que estava sendo lavado e mandei “Bom-dia,
tenho um horário na Carla, no oitavo andar”. A pessoa procurou pelo nome, fez
algumas ligações e finalmente comunicou que não existia ninguém com o nome de Carla
lá. Na hora pensei que fosse algum sinal, que deveria recuar ou coisa do
gênero. Sou muito ligada a essas intuições que vem do nada. Mas não, peguei o
telefone e entendi que, óbvio, estava no prédio errado. Corrigi o endereço e
finalmente cheguei.
Atendeu-me uma moça jovem, bonita, com traços italianos, o
tom firme, como eu havia notado por telefone. Mas não era uma senhora de meia
idade, daquelas que colocam medo e que você fica apreensivo só de encarar.
Sentamo-nos em uma poltrona, uma de frente para a outra, numa distância bem
próxima, daquelas que não tem como você desviar o olhar, sair correndo, fazer
algum gesto com a boca ou a sobrancelha, ou qualquer outra circunstância sem
ser percebido. Sem ser analisado. Embora estivesse à minha frente uma pessoa
simpática e com uma energia muito leve, aquilo era muito intimidador. Ela me
olhou e disse aquilo que repetiu por muitas outras sessões – ela me disse um
dia desses quantas eram, mas eu não me lembro -: “E então?”.
Comecei a falar, falar, falar, num monólogo que até hoje me
soa como inacreditável. Não sei como consegui falar tanto de mim. Expliquei o
motivo da minha estada ali, o que eu queria e, quando me dei conta, umas duas
horas depois, virei pra ela e perguntei “E então, quando é a próxima sessão?”.
Ela sorriu e me disse para ter calma. Antes, eu teria que responder a uma pergunta
muito séria: “Preciso saber por que você está aqui, se por você ou pelo que
motivou sua vinda até aqui?”. Depois de toda aquela conversa, foi a primeira
vez que gaguejei. Óbvio que a forma da pergunta já presumia o que eu deveria
responder para ser aceita. E eu achando que seria assim, tão fácil. Mas não
pensei muito, não. Gaguejando, elaborei algo sobre a minha necessidade de ser
uma pessoa melhor e outras coisas que honestamente não me lembro. Afinal, eu
tinha um motivo para estar lá. Em certo momento em meu monólogo, cheguei a
dizer que faria qualquer coisa para ter meu relacionamento de volta. Veja bem,
eu disse QUALQUER COISA. Na hora, não notei a alteração no semblante dela,
coisa que aprendi a observar algumas sessões depois. Mas o fato é que no epílogo
da nossa primeira sessão, eu me ative a responder aquilo que ela gostaria de
ouvir (ou não), crente que ela não tinha percebido a minha derrapagem. Acho que
me apresentei como um caso interessante a ser tratado, não sei. Marcamos a
sessão seguinte e as próximas para as quintas-feiras.
As quintas-feiras eram sagradas para mim. Costumava dizer
que fazia parte da minha trindade-santa-semanal: às quartas, um passe; às
quintas, terapia; e às sextas, um porre.
Nos meus encontros sociais, sempre que filosofava sobre a
vida, colocava a Carla no meio. Ela, sem saber, tornou-se íntima de todos que
me conheciam.
Carla sempre brincou comigo dizendo que era uma instituição
na minha vida. Todo mundo conhecia a Carla por me ouvir falar. Recebi várias
ofertas para fotografá-la às escondidas e então matar a curiosidade de saber
como ela é. Outros amigos tiveram esse prazer. Carla atendeu algumas indicações
minhas, a gente quase criou um programa de fidelidade.
Desde aquela primeira sessão, eu só me questionava sobre o
motivo, o qual tinha demorado tanto a fazer terapia. Meu relacionamento passou
por alguns ensaios depois daquilo. Alguns, muitos, diga-se de passagem. Mas,
para você ver como são as coisas: a terapia me ensinou que eu não deveria
resgatá-lo, que não era bom pra mim, que não correspondia àquilo que eu quero
para a minha vida. Tenho absoluta certeza de que eu não teria chegado a essa
conclusão sem a Carla.
Depois de longos meses superando meu motivo inicial, a Carla
me concedeu aquilo que, ironicamente, respondi em sua primeira pergunta.
Ensinou-me a me conhecer e o caminho para ser uma pessoa melhor. Você colocado
na frente de um espelho, não tem nada que melhor justifique o desejo e a
necessidade de mudar.
Assim como muitos, cometi erros severos com a psicanálise.
Achava que jamais poderia dar certo, uma vez que o terapeuta estaria diante
apenas da minha versão sobre os fatos.
Que ingenuidade. Até que entendi que terapia não é um tribunal, não é um
julgamento, não é o famoso jogo do que é certo ou errado. É autoentendimento. Como
prêmio, você também aprende a conhecer melhor as pessoas. Comigo deu certo.
Hoje, estou dando continuidade à abertura de novos ciclos e
também em reviver alguns antigos. Antes da Carla, eu só não pirei completamente
porque tinha o meu refúgio na escrita, na música, na arte. Estou buscando isso
tudo de novo. Usando a experiência de ser o que me tornei, unindo àquilo que
nunca deixei de ser. A receita origina uma Juliana mais legal, mais crítica,
certamente, mas também muito mais flexível em relação ao outro. Ontem, disse à
Carla que precisava andar sozinha por um tempo. Ela entendeu, pegou tudo o que
aprendeu sobre mim e me respeitou. Estou na minha nova velha experiência de
caminhar sozinha. Não sei por quanto tempo. Carla e o Tio Freud, como ela
costumava dizer, voltarão em algum momento, mas só depois que eu usufruir de
tudo isso que aprendi sobre mim e identificar a necessidade de novos
autoentendimentos.
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