fevereiro 05, 2005

Acabo de descobrir uma coisa. Poemas, a gente ouve. Isso mesmo, do verbo ouvir. As belas composições de palavras ficam ecoando na nossa cabeça e a gente fica ouvindo aquela voz lá no fundo. Às vezes é uma voz sutil, daquelas que a gente ouve apenas se prestar muita atenção. Mas às vezes, não. Ela é tão forte que os gritos nos faz ensurdecer. E, de tão forte, a gente precisa colocá-la pra fora, pra ver se, compartilhando, o volume fica mais baixo. Mesmo assim, é um risco. Risco de virar epidemia. Mas eu não me importo e não quero saber de vacina.

A primeira vez que ouvi este poema foi num programa de televisão. A pessoa que o arrancou da cabeça em forma de voz nem sequer parecia gostar dessas coisas. Mas, de alguma forma, ficou um pouco do poema nela. E ficou um pouco em mim. E não adianta fugir, porque vai ficar um pouco em você que está lendo estas palavras agora.

RESÍDUO
(Carlos Drummond de Andrade)

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficam poucas
roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
de teu áspero silêncio
um pouco ficou um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
nos pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
em pouco de mim algures?
no consoante?
no poço

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...

De tudo fica um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
do vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver...de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas tudo, terrível, fica um pouco.
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço do cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

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