setembro 27, 2004

Escrevendo no Escuro

Perguntaram-me se eu gostei do filme. Como assim, se eu gostei do filme? Simplesmente amei o filme. Uma produção tocante, como poquíssimas que vemos por aí. Comentaram, então, que eu tinha o coração de pedra porque não estava chorando. Ah, sim, lembrei-me que determinadas utopias emocionam e, naquele momento, por ser convencional, eu deveria estar chorando. Mas não estava. Talvez, eu realmente devesse já que, de certa forma, era oportuno. Eu tinha motivos, mas não tinha forças. Sequer optei por comentar o filme - não estava muito racional naquele dia.

Agora, passadas algumas horas, entendo que sim, o filme era mesmo utópico. Personagens bem estruturados, enredo convincente e atuações excepcionais. Era um musical. O bem e o mal eram abordados de forma ambígua e a mocinha não foi polpada como normalmente acontece. A mocinha, uma "pessoa humana", com o perdão do pleonasmo tão bem apropriado nesta ocasião, era o verdadeiro exemplo de bondade. Sua alma era pura. Suas atitudes eram impecáveis, virgens do mal. Era o protótipo mais apropriado que já vi de mãe - o modelo ideal de ser humano. Selma era o tipo de pessoa que, se você se deparasse com ela na rua ou no supermercado, certamente ficaria envergonhado. É o tipo de amiga que não executa um mínimo esforço para ensinar grandes lições. A sua essência se permite isso facilmente. Tenho certeza de que Selma seria o tipo de filha exemplar, assim como gostaria que seu filho fosse. Até mesmo suas mentiras eram perdoáveis, mediante a causa que a fazia mentir. Sua ingenuidade não causava graça, mas sim admiração. Não comovia, emocionava.

Este é o tipo de filme que lhe deixa com vergonha das suas atitudes. Impossível não remeter-se à mesquinhez humana. Inevitável não revoltar-se contra a sociedade travestida de Deus. Uma gota de angústia adentra em você com tamanha intensidade que, quando percebe, já está alojada lá no fundo do seu coração. A vontade é de chorar sim. De sair correndo e entrar no primeiro templo que aparecer. De se redimir, de lamentar, de refletir, de questionar. E o pior: sem encontrar respostas. Porque a intolerância não admite justificativas plausíveis. E o mundo é isso o que vemos: fracos versus fortes. Caminhamos distante do mundo ideal, em que a felicidade é cultivada coletivamente e de forma recíproca. Ninguém percebe que não se é feliz em conseqüência de tristezas. E que não se consegue o sucesso em conseqüência do fracasso alheio.

O filme é Dancer in the Dark, de Lars Von Trier. Estas palavras estão sendo escritas no escuro, para que continuem sendo verdadeiras. Porque, às vezes, lê-se melhor no escuro, com mais nitidez. As idéias ficam mais claras.

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